Foto: Carolina Israel

O ‘tecnossolucionismo’ em xeque nas eleições municipais

Por Carolina Israel e Rodrigo Firmino

[publicado por Brasil de Fato PR. Veja versão original aqui]

Com a aproximação das eleições municipais de 2024, em breve precisaremos avaliar e escolher entre as pessoas candidatas ao pleito municipal e, com elas, daremos aval a seus planos de governo. Os planos de governo podem ser, por vezes, meras promessas. Mas, sob o risco de concretização, têm um poder de impactar substancialmente as vidas nas cidades.

As cidades são continuamente afetadas por paradigmas ou modismos que elegem conceitos-síntese como base para sua gestão e desenvolvimento. Não faltam rótulos na história de Curitiba. A cidade chamada por muitos de “cidade modelo”, já foi a “cidade do planejamento”, a “cidade verde”, e hoje se vende como a “cidade mais inteligente do mundo”. Tais modismos integram as campanhas e os planos de governo e precisam ser olhados com cautela.

Nas eleições de 2018, Rafael Greca foi eleito sustentando em seu plano de plano de governo a bandeira das Cidades Inteligentes, a qual almeja passar a seu vice, Eduardo Pimentel. Cabe então analisarmos qual o saldo da Curitiba Inteligente deste último mandato, para avaliarmos se o solucionismo tecnológico como estratégia de gestão urbana é, de fato, a via que queremos.

Apesar de não haver um consenso sobre o que significa uma Cidade Inteligente (“Smart City”), as políticas públicas que são anunciadas no âmbito desse “city marketing” derivam fundamentalmente do acoplamento de dispositivos e sistemas digitais à gestão urbana, introduzindo sistemas de processamento de dados e inteligência artificial (IA) aos serviços públicos.

Nessa abordagem, é comum o uso excessivo de soluções tecnológicas baseado na premissa de que as tecnologias são neutras, isentas de vieses e capazes de resolver problemas que os seres humanos não conseguem. Essa é a base do que se conhece por solucionismo tecnológico ou tecnossolucionismo. A gestão Greca tem sido fortemente pautada por esse paradigma, com o aplicativo Saúde Já, com a Muralha Digital e, agora, com o anunciadoHipervisor Urbano, que pretende convergir e centralizar os dados de Curitiba.

Essas implementações são anunciadas como se a gestão automatizada de dados pudesse resolver as diversas carências, desinvestimentos e desigualdades que perpassam o espaço urbano. Como se os problemas da cidade derivassem da complexidade do social, e fossem passíveis de serem resolvidos por algoritmos computacionais. Como se esses problemas não surgissem de uma desigualdade estrutural que, hoje, sustenta o novo negócio das Cidades Inteligentes. Argumentamos, nesse artigo, que a digitalização das cidades significa, no final das contas, uma privatização da gestão pública e um controle dataficado do social, com o acréscimo de um vigilantismo digital ampliado, num novo casamento entre o Estado e o mercado, onde quem ganha, não é a população.

O sequestro privado da inteligência

Se o slogan das Smart Cities se tornou recorrente nos últimos anos, sobretudo depois de 2010, o processo de digitalização terceirizada das cidades remonta a fins da década de 1990. Este é o caso de Curitiba, com a criação do Instituto Curitiba de Informática (ICI), uma Organização Social sem fins lucrativos.

O ICI foi criado em 1998 pela Prefeitura, sob a gestão de Cássio Taniguchi, adotando, hoje, o nome fantasia “Instituto de Cidades Inteligentes”, o que lhe permite continuar com a sigla ICI. O prédio onde o ICI está alocado pertence à Prefeitura, e seus primeiros funcionários eram servidores emprestados da administração pública.

Antes da criação do ICI, a prefeitura aprovou estrategicamente a Lei Municipal nº 9226, em 1997, que exime as Organizações Sociais de passar por processos licitatórios. Ou seja, a Prefeitura pode contratá-las diretamente, dispensando os processos de concorrência que garantem o princípio de economicidade dos recursos públicos.

É assim que, hoje, o ICI agrega a quase totalidade do processamento de dados de Curitiba, entre sistemas de saúde, educação, segurança, gestão do espaço urbano e ambiental, além do atendimento ao cidadão. Levantamentos de dados realizados no Portal da Transparência da prefeitura de Curitiba, indicam que, apenas entre o período de 2020 a 2023, a gestão Greca gastou mais de 800 milhões de reais em contratos com o ICI.

O modelo que sustenta o ICI e sua relação com a prefeitura de Curitiba surgiu a partir das transformações dos antigos Centros de Processamento de Dados (CPD) de prefeituras no final da década de 1990, numa proximidade arriscada entre o Estado e a iniciativa privada, promovendo um “sequestro privado da inteligência urbana”. Mais recentemente, com o avanço das tecnologias digitais, do processamento de dados e da inteligência artificial, esse tipo de abordagem se alastrou para todos os aspectos da gestão urbana, com visível predominância em políticas e ações ligadas à segurança pública, como veremos a seguir.

Muralha digital: a militarização high tech da guarda municipal

A seção do site oficial da prefeitura Curitiba sobre o programa Muralha Digital (MD) o define a partir do slogan “tecnologia aliada à segurança”, e revela as várias metáforas que compõem a iniciativa, da óbvia alusão a muralhas medievais, ao pânico e cercamentos. De forma muito vaga e com economia de informações, o site apresenta o MD como um conjunto de medidas securitárias suportadas por tecnologias digitais, tais como: integração de telefones de emergência, câmeras de vigilância em “pontos estratégicos”, monitoramento térmico, reconhecimento facial e outros tipos de inteligência artificial, “cerco de segurança à cidade” com monitoramento de entradas e saídas, câmeras corporais para a guarda municipal, “botão do pânico” para mulheres em atendimento pela Patrulha Maria da Penha e escolas municipais, e centro de controle operacional para o programa.

Na inauguração oficial do MD, em 2021, o prefeito de Curitiba, Rafael Greca, anuncia que a “Muralha Digital é uma estrutura da prefeitura que não dorme, é a contribuição de Curitiba, cidade inteligente, à segurança da Região Metropolitana”. Além de deixar claro que o MD faz parte de uma estrutura securitária funcionando ininterruptamente, o prefeito relacionou o projeto ao imaginário da cidade inteligente que, como mencionado anteriormente, é tema recorrente na disputa das cidades por investimentos e reputação. Basta uma simples busca por projetos semelhantes, no Brasil e no exterior, para comprovar a íntima relação entre o ideário das cidades inteligentes, o uso de tecnologias digitais, e iniciativas com foco na segurança pública.

Tem sido comum, nos últimos cinco anos, anúncios da prefeitura de Curitiba sobre a boa colocação da cidade em concursos e rankings de cidades inteligentes. Em 2019, a gestão Greca celebrou um controverso acordo com a Smart City Expo World Congress, de Barcelona, para abrigar a versão brasileira do evento, em um pacote que teria custado cerca de 11,8 milhões de reais. Este acordo é apontado por vereadores e deputados estaduais da oposição como motivador, ou contrapartida, do prêmio de Smart City 2023 concedido à Curitiba pela organização global do evento na Espanha. A prefeitura prefere anunciar o prêmio com um certo exagero na tradução para o português, como se a cidade tivesse sido eleita a “cidade mais inteligente do mundo”.

Seguindo o padrão de delegar a digitalização dos serviços públicos a entes privados num modelo concentrado, a Prefeitura contratou o ICI para montar a estrutura do Muralha digital, mantendo a prática da dispensa licitatória. Os contratos disponíveis no Portal da Transparência indicam gastos na ordem de R$ 9.548.220,00, em 2020, para a montagem da estrutura, e de R$ 7.528.800,00, em 2022, para manutenção do sistema.

Seguindo a tradição dos polêmicos contratos sem licitação, em 2022 o Jornal Plural noticiou que as câmeras corporais vendidas pelo ICI à Prefeitura custaram quatro vezes mais do que em contratos similares de outras localidades. A despeito da irracionalidade desses gastos, o ICI enfatiza a relação do sistema digital de segurança “pública” com as Cidades Inteligentes, referindo-se ao MD como uma ação que “alia policiamento e tecnologia da informação para tornar a capital paranaense mais segura e inteligente”.

A gestão Greca soube, reforçando uma habilidade histórica da administração municipal de Curitiba, criar um novo rótulo e vinculá-lo às estratégias de “city marketing” e suas outras marcas.

Hipervisor: qual digitalização das cidades está por vir?

Com a inauguração do Hipervisor, em fevereiro de 2024, as informações da Muralha Digital foram tragadas para dentro do novo sistema, num movimento de centralização privada dos dados, e escalada de uma abordagem vigilantista. Isso porque, embora o órgão responsável pelo Hipervisor seja o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), o sistema digital de processamento, organização e disponibilização dos dados, incluindo a solução de IA são oriundos da empresa Metroplys, que oferecerá o programa na modalidade Software como Serviço. Em termos práticos, significa a instauração de uma relação de dependência da Prefeitura com esse sistema, incluindo a necessidade da renovação contínua do contrato e as despesas que isso envolve.

O mais sensível, entretanto, refere-se ao acesso a dados públicos por entes privados, implicando numa perda da soberania de dados por parte do município e o risco de seu extravio para atender a interesses econômicos. Em síntese, foram gastos R$ 4.943.442,00 para montar uma estrutura que alimentará o mercado de soluções privadas para a gestão das cidades.

As colocações e ressalvas que trazemos nesse artigo não significam uma rejeição irrestrita ao uso de tecnologias para a gestão urbana, numa espécie de tecnofobia. Significa, como nos lembra Deleuze, entender que a tecnologia é social, antes de ser técnica, e que nunca é neutra e, portanto, não pode ser entendida como panaceia para os problemas urbanos. Isso implica observarmos quais configurações socioespaciais os arranjos sociotécnicos conformam.

Numa perspectiva que valorizasse o bem público, a gestão democrática e a transparência, tais sistemas seriam criados a partir das universidades públicas, seus sistemas algorítmicos estariam abertos ao escrutínio e auditoria e, mais importante, a sociedade participaria da decisão sobre como as cidades devem ser digitalizadas. Assim, se estabeleceria uma tecnopolítica comprometida com a soberania digital e a tecnodiversidade.

+projetos